Experimentação autodidata de Clown Nº.1 .......................................................................................................................................................................
Por
Alexandre Rolim
Lecco abre o baú. Pega um calção de jogador de futebol e veste.
- Vai jogar futebol?
Acena que sim.
- E não ta esquecendo de nada?
Acena que não.
- Acho que ta sim. Cadê a bola?
(T)
- Você nem sabe jogar bola. (T) - Sabe? Então, me mostra.
- A bola está dentro da mala.
Lecco vai até a mala, pega a bola e tenta fazer embaixadinhas.
- Ih! Parece que ta meio enferrujado!
Acena que sim.
- É melhor você desistir.
(T)
Ele vai até a platéia e seleciona cinco meninos e meninas.
- Isso não vai dar certo. Você é muito perna-de-pau.
Eles se dividem em dois times. Lecco diz que é Flamengo.
- O que foi? Ah, você é Flamengo. Ih! Vai perder até as ceroulas!
Acena que não.
- Eles são que time? (T) – Corinthians! Xi, não é querendo te desanimar não, mas acho que eles vão ganhar.
Acena que não.
- Mas, cadê as traves?
Lecco tira os sapatos, cheira, faz cara de nojo, e improvisa uma das traves. Uma das crianças faz o mesmo do outro lado.
Lecco começa a se aquecer.
- Hei! Pra que isso? (T) - Tá se aquecendo?
Ele se aquece como uma bailarina.
- Isso não vai dar certo. É melhor você desistir.
Acena que não. Depois diz que está pronto. Ele tira uma moeda do bolso, faz um truque e tira cara ou coroa. Põe a bola no meio do ‘campo’ e começa o jogo.
A bailarina está em palco. Saia púrpura. Sapatilhas de ponta. Na ponta dos pés. E ela dança só. Gira e [re]gira e torna a girar. Incansável, satisfaz o olhar da criança.
A musiquinha uníssona invade o quarto e o mundinho que se esconde atrás dos olhos castanho-mel.
A imaginação flui além-ar, além-mar, além-além. Não há nada além-além. Há o vazio, mesmo assim, a criança imagina o vazio.
- Mesmo sendo vazio o vazio não é vazio – pensa. - Pois ele existe. Ele tem cor [ou não?].
Se tem cor não é vazio, afinal a cor pode ser concreto e pode ser abstrato e mesmo o abstrato não é vácuo, porque existe, mesmo que oco.
No oco vale tudo: serpentes engolem elefantes, mlheres viram sereias, sapos e bodes viram príncipes, enfim, o tudo vira nada, o nada vira tudo e... cria-se, inventa-se.
Peraê!? Se vale tudo, então vale bailarina se apaixonar?
E a bailarina segue seu infindável girar.
- Mas ela parece tão triste, apesar de dançar. Está só. A bailarina está só. Ela dança na solidão.
Gira: na solidão.
Ela e seu reflexo no espelho que nada mostra, além de imagens já mostradas e palavras já proferidas.
Mas lá no fundo parece que o espelho mostra o interior. A bailarina quer se esconder, apesar de achar bonita a imagem que reflete, porém ela enxerga além e lembra que já amou:
- Um soldadinho de chumbo. Suspira a criança de olhos alegres.
Ela corre, vai até o quintal e trás para a bailarina da caixinha de música um soldadinho de chumbo.
A ilusão recomeça, a imaginação flui, o vazio é preenchido e mais uma história de amor é [re] contada, sem palavras, pela criança pura e ingênua dos olhos castanho-mel.
O processo de criação de um personagem é longo. Construir uma bruxa para o teatro infantil é ainda mais complicado. Senti isso na pele nos últimos dias.
De última hora passei de Cancioneiro/Contador de História à Bruxa Malvada na peça "Feiurinha para Crianças" - concepção de Van César para o texto "O Fantástico Mistério de Feiurinha" de Pedro Bandeira, montado pelo Teatro Ogan.
Entendamo-nos. Um dos integrantes acabou desintegrando-se do elenco de última hora. Assumi o papel imediatamente e pus-me a estudar o personagem, me embrenhei em um emaranhado de complicações, pois não encontrava uma bruxa que não fosse aquela que vira no corpo do antigo 'encenador'.
A bruxa dele era uma espécie de Cigana Moura que falava Portunhol de forma rústica e bizarra. Acabei optando por uma compilação da bruxa [des]estereotipada dele.
Quatro dias depois subi ao palco do Cine Teatro Cuiabá, com o coração nas mãos (que tremiam), não sabia se me concentrava no texto, no sotaque ou na construção física do personagem.
Por fim, decidi-me pelo improviso e fui.
Não ficou a bruxa dos sonhos do meu diretor, mas, tenho certeza, surpreendi até mesmo a ele.
Apesar da compilação, criei, improvisei e acertei. Errei também, mas construi o que parecia impossível e, novamente, me descobri clown. Descobri minha natureza pulsando no palco, pois me deixei ser eu, senti a mim mesmo e construi algo em cima do Eu interior.
E para o Clown isso basta. Estou no caminho certo, eu acho!
Sou o palhaço tristonho, que veste as cores mais simples:
o branco e o preto - a luz e a escuridão.
Sou eu palhaço sem risos, de grandes amores e dores maiores ainda.
Sou eu o palhaço que sonha, os sonhos das dores, de amores que nunca vivi, só devaneei, sonhei, inventei.
Sou eu o palhaço amante das palavras, que usa e abusa dessas suas amadas agora vistas no papel.
Sou eu o palhaço adorador das cores, que as ama e repulsa, escolhendo a simplicidade de todas as cores em uma e mais o preto, o luto por sua dor.
Sou eu o palhaço/criança, que com essas palavras infantis e um coração ingênuo descrevo emoções da alma no papel.
Sou eu o palhaço/poeta, que viu nas palavras a possibilidade de um novo mundo, entre a realidade e a fantasia.
Sou eu um Pierrot, palhaço de cores simples, mas sem sorrisos a expor, amante de Colombinas, que preferem a variedade das cores, á união das mesmas na simplicidade de uma única.
Sou eu um Pierrot, palhaço perdedor, que sempre perde o amor de Colombina para um tal de Alerquim, palhaço chinfrim, que usa cores separadas e um sorriso de escárnio.
Sou eu um Pierrot, palhaço agora sem amor, que vê o coração das amadas nas mãos do zombador.
Sou eu um Pierrot, palhaço sem amor, que aguarda pelo dia em que encontrara a Colombina, que aceitara seu tolo amor.
Se vestir de palhaço pela primeira vez, para mim, foi como dar o primeiro beijo na boca. (Brincadeira. Exagerei prá deixar o texto mais divertido).
Hoje, Dia da Criança, coloquei uma roupa de palhaço colorida e fui com o meu diretor de teatro, Van César, para uma tarefa voluntária - animar crianças em um ato social realizado anualmente pela sociedade civil organizada de minha cidade.
Meu diretor, sempre criativo, nomeou-nos como Papinha (Eu) e Bolota (Ele).
Fui, para mais um teste de talento. A príncipio, fiquei perdido em meio a tantas crianças. Elas se penduravam nas minhas pernas, quase arrancavam a minha roupa, passavam a mão em minhas nádegas.
- Deixe fluir o palhaço que há dentro de você! - Disse uma voz do além. (Mentira)
Aos poucos me [des]constrangi e me soltei. Saiu um palhaço diferente: amigo, conquistador, preguiçoso. Eis o Papinha.
Conquistei amiguinhos imediatos, a Júlia foi uma delas. Não me largava um minuto, não queria saber dos demais palhaços.
Acabei me divertindo bastante, apesar de ter sentido que não estava a vontade dentro da roupa que vestia e por tras da maquiagem que usava.
Entretanto, essa foi a minha primeira experiência. Confesso, gostei da ideia e a cada dia que passa, mais e mais me interesso por este desafio: clown.
Aos 11 anos fiz balé na escola, mas balé não era coisa prá meninos, diziam meus colegas.
Você acha que parei? Claro que não! Continuei.
A professora Fátima me ensinou muita coisa em poucos meses, ganhei sapatilhas e até notas melhores no Diário Escolar.
Claro que eu não levava minhas sapatilhas para casa, minha mãe nem sonhava com isso.
Ela queria mesmo que eu fosse doutor, médico, advogado...
Aliás, tudo menos artista.
- Artista é tudo vagabundo! - Dizia.
Um dia aprendi a fazer Coupé, um saltinho rápido e básico de balé clássico, e cheguei em casa e pus-me a dar pulinhos pela cozinha enquanto mamãe terminava o almoço apressada, pois tinha que ir trabalhar.
Ela parou por um instante, enquanto eu saltitava despercebido e disse:
- Que coisa de viadinho é essa?!
Eu disfarcei. Fui para o quarto e fiquei saltitando em frente ao espelho.
Eu tinha 11 anos.
Eu sonhava ganhar o mundo, fazer escola em Paris, Berlim, Moscou.
Como eu sempre fui esguio, leve, disciplinado, solto (sem confusões), me dava muito bem nas aulas de balé.
Cinco meses depois da primeira aula fiz a minha primeira e única apresentação de balé em público, era uma música linda, na época eu não sabia o nome, hoje sei e a evito: Suíte n. 1 de Bach.
Suíte Nº. 1 de Sebastian Johan Bach
A apresentação foi fantástica, apenas eu e uma menina, que preservarei o nome, dançamos muito bem, aliás, agradamos ao gosto aguçado da professora.
Pena que os meus coleguinhas não gostaram muito da ideia, a partir daí surgiram as brincadeirinhas, as chacotas.
- Oi bailarina! Que sapatilhas lindas.
Coisas do tipo.
Certo dia um menino, o qual eu odiava religiosamente, Gil (mar), ultrapassou os limites e me fez tomar atitudes mais drásticas, o que lhe rendeu alguns pontos na altura do ombro direito.
No final do recreio, eu já estava em minha sala, ele passava no corredor, olhou pela janela e provocou:
- Cadê as sapatilhas, bichinha?
Não pensei uma vez, pulei a janela munido de um estilete feito de uma mistura de tubo de caneta e lâmina de apontador de lápis e o golpeei na altura da garganta acertando-lhe (por sorte) no ombro direito.
A lâmina atravessou a malha do uniforme e penetrou profundamente na carne do menino.
Ele pôs-se a chorar, eu o olhava, enquanto era rodeado por alunos, professores, coordenadores, diretor e por fim, minha mãe.
Resultado:
- Nunca mais vai fazer balé. Coloquei um homem no mundo, não um viado.
Eu tinha 11 anos, não tinha condições de enfrentar isso sozinho.
Esse fato afetou 'grandemente' em minha personalidade, mais tarde uma psicóloga me diria que muitas das minhas limitações com a dança eram provenientes deste ocorrido.
Hoje estou disposto a rever conceitos e voltarei a fazer algumas oficinas de balé, como parte integrante do laboratório de montagem e/ou 'encontro' do meu clown, afinal de contas, este foi um dos meus primeiros sonhos destruídos, ressequidos, abandonados.
Hoje faz 26 anos que estou atuando neste imenso palco chamado vida.
Ainda não me encontrei... nem sei se quero, se devo.
Meus amigos, os poucos e maravilhosos que tenho, compraram um bolo e Coca-Cola, me abraçaram...
com minha mãe falei apenas por telefone, ela chorou - sempre chora - eu a amo.
Tá bom! Eu confesso que chorei o dia todo como uma criança que perdera o brinquedo favorito...
parece que cada vez os dias, os meses, os anos, os momentos, passam mais depressa.
Abaixo algumas palavras deste "Eu" famigerado, utópico, melancólico, que atua nos palcos de ficção ou não:
Partindo do pressuposto antropofágico
Que o homem nunca se afastou
Engolidores de tochas de carne viva
Diante a uma sociedade devoradora de sonhos
Trabalho inconsciente
Todos nós geradores de mais valia,
Bandeira do Capitalismo!
Cada um sempre e sempre...
Castração habilidosa, cuidadosa e planejada
Prisão de sonhos,
Vida efêmera, tensão, abstinência.
Eixos para amar, mas... o que?
A vida! Sim a vida...
Acesso? Quem é esse?
Busca, rebusca, robusta.
Competências, flexibilidades.
Trabalho multifacetado
Configurado para a escravização.
E perante a tudo isso:
Nasce mais um bebê na maternidade.
Esperança do brilhar do sol e do cair da aurora,
Nas bases de uma nação mecanizada
E presa ao padrão
Será que é necessária a reprodução?
Pra que?
Se tudo que vemos é repetição!